Glaucia Villas Bôas entrevista Maria Laura Cavalcanti

BVPS. Biblioteca Virtual de Pensamento Social Drama, ritual e performance. A antropologia de Victor Turner. (Ed. Mauad, 2020)

Matéria original no link:https://blogbvps.wordpress.com/2020/10/28/drama-ritual-e-performance-a-antropologia-de-victor-turner-glaucia-villas-boas-entrevista-maria-laura-cavalcanti/

Na atualização de hoje do blog da BVPS publicamos uma entrevista com a antropóloga Maria Laura Cavalcanti, professora titular da UFRJ, sobre seu mais recente livro, Drama, ritual e performance. A antropologia de Victor Turner (Mauad Editora). A entrevista foi conduzida por Glaucia Villas Bôas, professora titular de sociologia na mesma universidade, e é antecedida por uma pequena apresentação ao livro. Na conversa, Maria Laura Cavalcanti nos conta um pouco de sua trajetória, trata de questões e conceitos fundamentais de Turner, discute a recepção de sua teoria e identifica algumas das interlocuções intelectuais do autor de Floresta de símbolos.

Drama, ritual e performance. A antropologia de Victor Turner, que já está disponível aqui, será lançado na 32º Reunião Brasileira de Antropologia. Na mesma ocasião a autora também lançará Carnaval sem fronteiras. As escolas de samba e suas artes mundo afora, livro que já foi anunciado no blog.

Boa leitura!

 

O livro Drama, ritual e performance. A antropologia de Victor Turner, de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, acaba de ser publicado pela editora Mauad no Rio de Janeiro. Nele, a autora, professora titular de Antropologia da UFRJ, retoma a obra do antropólogo britânico com o objetivo de  percorrer a constituição de seu pensamento, revelando ao leitor sua contribuição singular à antropologia dos rituais e da esfera simbólica da vida social. Trata-se de um trabalho meticuloso de quem não somente recorreu aos conceitos de Victor Turner em importante programa de pesquisa sobre o carnaval e festas populares como refletiu sobre suas ideias sistematizando-as. Com escrita elegante, que caracteriza os trabalhos de Maria Laura, o livro atrai o leitor interessado em conhecer a obra do autor que marcou a antropologia, inclusive a brasileira. Prefaciado por Roberto DaMatta, o livro apresenta introdução, três capítulos intitulados respectivamente Drama Social: o teatro adentra a antropologiaSímbolo ritual: luzes e sombras no dia social e Do drama à performance. Além disso, traz duas entrevistas realizadas pela autora com Roberto DaMatta e Yvonne Maggie, que contam suas experiências, relembram a amizade com Victor Turner e mostram a influência que receberam de um dos mais notáveis personagens da antropologia social britânica, cuja obra levou adiante o trabalho de Max Gluckman de quem foi orientando, e cuja carreira subsequente nos Estados Unidos foi especialmente inovadora. Instigada por algumas perguntas, Maria Laura nos fala do novo livro.

Drama, Ritual e Performance. A Antropologia de Victor Turner Glaucia Villas Bôas entrevista Maria Laura Cavalcanti

1. Glaucia Villas Bôas: Maria Laura, gostaria de saber em que circunstância e por que motivo se interessou pela obra de Victor Turner – e de maneira tão especial que a levou a percorrer sua obra de modo aprofundado?

Maria Laura Cavalcanti: Os melhores encontros parecem ser os imprevistos. Ou talvez algumas influências sejam tão essenciais que demoramos a nos dar conta delas. Conheci o trabalho de Victor Turner ainda no mestrado no Museu Nacional/UFRJ – fui aluna de Roberto DaMatta em dois de seus cursos, ministrados em 1978 e 1979. Justo quando DaMatta concluía e lançava Carnavais, malandros e heróis (1979), uma obra que elaborou de modo próprio e criativo a antropologia trazida por Victor Turner. Cheguei a conhecer o casal Turner, Victor e sua esposa Edith, em visita a casa de um colega, onde estavam também DaMatta e sua esposa Celeste. O mestrado durava então quatro anos, foi um tempo de muito estudo e lembro-me de meu interesse por Forest of Symbols (1967), que encomendei de um amigo que tinha ido aos Estados Unidos. Lembro também da curiosidade despertada pelo conceito de drama social, usado de modo tão proveitoso por Yvonne Maggie em Guerra de Orixá (1975), que li nessa mesma época. Anos mais tarde, já na pesquisa de doutoramento, a visão processual da experiência social e do desenrolar dos rituais no tempo trazida por Turner em O processo ritual (1969) foi decisiva para a abordagem do carnaval das escolas de samba em meu Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile (Cavalcanti, 1994). Mas foram os Bumbás de Parintins (Amazonas) que, com sua densa simbolização e intensa afetividade, me fizeram voltar a Turner com novos olhos (Cavalcanti, 2018). Quando comecei essa pesquisa, eu já era professora de antropologia no IFCS, na graduação em ciências sociais e na Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. A associação entre sala de aula, orientação e pesquisa cria um ambiente muito estimulante para professores e alunos, onde ideias e afinidades teóricas vão ganhando forma mais definida. No final dos anos 1990 fui fazer um Pós-doutoramento na Universidade de Columbia (NY) e levei todo material etnográfico do Bumbá que tinha até então para organizar e um denso plano de estudos na área de rituais e simbolismo. Sempre digo aos alunos que as teorias de ritual são teorias da cultura e da vida social de modo geral, a tal ponto são centrais no desenvolvimento da antropologia. Levantei uma bibliografia que até hoje percorro com interesse e dentro dela a obra de Turner acabou ganhando contorno próprio. Naquele final dos anos 1990, o interesse pelo tema da performance e correlatos dominava os debates nas conferências, reuniões e seminários de que participei nos EUA, e Turner emergia sempre pela via de sua interlocução,  no início dos anos 1980, com o diretor de teatro nova-iorquino Richard Schechner. Quando cheguei de volta ao Rio de Janeiro, encontrei esse mesmo interesse na antropologia brasileira. Foi quando criei o Núcleo de Estudos Rituais e Sociabilidades Urbanas, no PPGSA do IFCS. No pós-doutorado eu havia podido ler o magnífico A interpretação dos sonhos, de Freud, que me fez redimensionar e compreender melhor a teoria do símbolo ritual de Victor Turner, proposta especialmente em Floresta de símbolos (Descobri depois que Turner o lera quando estava entre os Ndembu!). Ao mesmo tempo o ambiente da chamada antropologia pós-moderna renovava as possibilidades de leitura das notáveis monografias clássicas. Clifford Geertz com sua lucidez chamou atenção, no ensaio “Mistura de gêneros” (1983[1980]), para o uso muito consciente da metáfora e para a dimensão transformativa do conceito de drama social elaborado por Turner em seu livro de estreia, Schism and continuity in an African society [1957]. Li o livro que até então não conhecia. Deslumbrante, ali encontrei uma espécie de fio condutor, uma chave para a apreensão de uma certa unidade que atravessa a obra tão heteróclita e multifacetada de Turner.  Nos cursos da pós-graduação e da graduação fui aos poucos me debruçando sobre diversos aspectos e fases dessa obra, aproveitando também muito dela nas orientações e no amadurecimento de minhas próprias pesquisas. Entre as muitas ramificações do pensamento de Turner, drama social, símbolo ritual e performance emergiram como fulcros conceituais fecundos que permitiam interligar aspectos diversos de sua obra.  Nesse percurso foram surgindo os artigos e também as entrevistas com DaMatta e Maggie que deram forma ao livro, um resultado que não havia planejado antecipadamente.

2. Glaucia Villas Bôas: Em seu livro você diz que para Victor Turner conflitos e tensões existentes em um grupo social se expressam nos rituais de cura e aflição. O conceito de ritual e da estrutura do processo de mudança social elaborados por ele têm sido retomados na antropologia brasileira contemporânea?

Maria Laura Cavalcanti: A obra de Turner é um tanto assistemática e desafiadora. Algumas das definições propostas por ele são por vezes muito restritivas ou demasiado amplas e não fazem justiça a seu próprio pensamento que, no entanto, é sempre cheio de luminosos insights conceituais. A própria noção de ritual que atravessa sua obra acaba funcionando como um guarda-chuva a abrigar formulações diversas sobre os processos de simbolização da experiência. Ou como uma espécie de eixo em torno do qual giram seus múltiplos interesses. É importante ver suas ideias no movimento dos seus textos. Drama social, símbolo ritual, rituais de aflição, a releitura dos ritos de passagem de Van Gennep com o adensamento analítico da liminaridade, sua extensão para a communitas (aquele estado extraordinário da vida social  em que hierarquias e distinções sociais são transcendidos pela experiência de laços humanos essenciais e genéricos), a aproximação final da performance ritual com a performance teatral (que retorna de certo modo à pletora do drama social), são conceitos que recobrem uma variada gama de assuntos e iluminaram a força da ação simbólica e o lugar do sujeito na experiência dos processos sociais. Espraiam-se por muitos campos da antropologia: religião; narrativas e literatura; festas e rituais; poder e política; formas expressivas e performance; saúde e corporalidade; entre outras. Foram apropriados de modo sugestivo por historiadores, pelo teatro e estudiosos das performances, interessam às humanidades em geral. Têm sido usados desde os anos 1970 com imenso proveito pela antropologia brasileira. Turner sempre indica caminhos que testam os limites dos marcos teóricos com que opera e por vezes rompem esses limites. É o caso de sua relação com Max Gluckman, orientador de sua tese de doutorado, o já citado Schism and continuity; e com as molduras analíticas do estrutural-funcionalismo, que nos anos 1940-1950 forjaram o esplendor da chamada antropologia social inglesa, dos africanistas em especial.  Max Gluckman estava particularmente interessado em integrar o conflito à dinâmica da vida social, já propusera o valioso conceito de situação social em que perspectivas distintas de grupos de atores diversos emergiam em tensão. Ele já trouxera nova direção para a reflexão sobre mudança versus continuidade das estruturas sociais, e louvou a contribuição trazida por Turner em seu doutoramento. Gluckman valorizou a novidade do conceito de drama social que iluminava a agência de sujeitos concretos perante determinações estruturais e mostrava de modo convincente como a reprodução social podia se dar não apesar das tensões e conflitos, mas justamente através das tensões e conflitos. Também ao ordenar o desenrolar dos conflitos numa sequência temporal orgânica, Turner iluminava a dimensão processual da vida social. Porém, com esse mesmo conceito e nesse mesmo livro, já se definiam rumos que terminariam por deslocá-lo do ambiente intelectual da antropologia social então dominante na Universidade de Manchester. Muitos anos mais tarde, foi Geertz (1983 [1980]) quem chamou a atenção para a heterodoxia do conceito de drama social formulado por Victor Turner em 1957. É bem verdade também que, nesse mesmo ensaio, Geertz não deixou de criticar o uso indiscriminado e genérico desse conceito em contextos radicalmente diversos. Mas em Schism and continuity tudo é muito preciso. Além disso, havia entre os ndembus os rituais, variados, intensos e constantes. Com eles, em especial com os rituais de cura (ou de aflição), renovava-se o sentimento de pertencimento de todos os ndembus a um mesmo povo, distinto dos tantos outros que o cercavam. Na ausência de estruturas de poder central e mesmo de hierarquias bem definidas, em meio à constante instabilidade da organização social de suas aldeias, era por meio dos rituais que os ndembus lidavam com as tensões e conflitos latentes que eclodiam periodicamente nos dramas sociais.  Esses rituais eram o lócus de construção do vínculo social por excelência, por meio deles os ndembus asseguravam sua continuidade como povo ao longo do tempo. A vida simbólica não expressava nenhuma realidade anterior a ela, era ela mesma a criação e recriação constante dos laços sociais. A sequência da carreira de Turner, já em universidades norte-americanas onde o ambiente da contracultura reinante nos anos 1960 favoreceu sua heterodoxia, desdobrou possibilidades latentes dessas dimensões mais ousadas de sua tese de 1957.

3. Glaucia Villas Bôas: Como você vê a recepção da noção de drama social pela antropologia brasileira e alhures? A apropriação da ideia de performance tem sido mais destacada no contexto intelectual pós-moderno?

Maria Laura Cavalcanti: Entre os anos 1960 e 1970, os interesses de Turner, vindos dos estudos dos rituais e símbolos da antropologia clássica, já tinham se  aberto para o que ele muitas vezes chamou de simbologia comparativa, um projeto analítico que pôs em diálogo a pesquisa realizada entre os ndembus com narrativas literárias ocidentais, dramas políticos, romarias e procissões cristãs, ordens mendicantes, o modo de vida hippie entre outas coisas. No começo dos anos 1980 – e Turner morreu em 1983 – seus interesses se redirecionaram para o teatro experimental em diálogo próximo com o diretor Richard Schechner, já no contexto do amplo interesse pós-moderno pela performance, do qual ele mesmo se via como um precursor. Turner reuniu seus escritos sobre esse tema em From ritual to theatre, publicado em 1982; e outros escritos relacionados foram publicados no livro póstumo The Anthropology of performance, de 1987. Performance – para além de seu sentido semântico corriqueiro de desempenho, ou simplesmente apresentação – é uma noção complexa vinda do campo artístico, dos estudos da linguagem, da oralidade e das narrativas, e mesmo de dentro da antropologia, onde essa noção abarca conceituações bem distintas. Busco realçar que o entendimento de performance por Turner remete a dois aspectos marcantes de sua obra anterior, por vezes obscurecida pela novidade das viradas.  Há logo à vista o potencial heurístico da formulação originária do drama social. Uma pletora de ideias que apreende a natureza processual da experiência social e a concomitância de determinações sociológicas e da subjetivação reflexiva de significados e valores sociais. Além disso, o drama social supõe a teatralidade em suas diferentes fases, envolve a apresentação de pleitos, argumentos e contra-argumentos perante plateias. Traz ainda embutida a narratividade, pois tanto os sujeitos que vivenciam o drama social como o próprio antropólogo que o analisa elaboram narrativas que alinham e realinham a sequência de eventos pertinentes. Mas há também – e esse ponto é pouco evidenciado na apropriação contemporânea da performance turneriana – a densa conceituação da simbolização ritual proposta por Turner. Os símbolos postos em ação em contextos rituais condensam dimensões sensíveis e corpóreas, aspectos emocionais, significados e valores morais. São eles os mediadores entre os sujeitos envolvidos e a experiência coletiva, propiciam a vivência pessoal que permite apreender conhecimento novo e também reorganizar a conduta dentro um leque de alternativas socialmente possíveis.  Quando juntamos os vários aspectos do drama social às múltiplas dimensões da simbolização ritual, atravessamos o umbral do entendimento da performance por Turner: a culminância de um processo em que ato e consciência se unificam num tempo experimentado como puro fluxo pelos sujeitos. A natureza expressiva da performance completa uma experiência mais ampla.

4. Glaucia Villas Bôas: A ideia do vivido em Turner faz lembrar da importante distinção feita por Dilthey entre vivência (Erlebnis) e experiência (Erfahrung), o que não significa que Victor Turner tenha se aprofundado na leitura do autor. De todo modo, gostaria de saber se ele conhecia a discussão das ciências humanas na Alemanha do início do século XX que tinha um de seus focos naquela distinção.

Maria Laura Cavalcanti: Nessa fase final de sua trajetória intelectual, Turner buscou fundamentar filosoficamente suas ideias e estudou o pensamento de James Dewey e de Wilhem Dilthey. Dilthey já era referência importante em From ritual do theatre (1982) e no estudo “The anthropology of performance”, publicado no livro póstumo de mesmo título que reuniu trabalhos de diferentes fases de sua carreira (1987). Há ainda “Dewey, Dilthey and drama: an essay in the anthropology of experience”, publicado postumamente na coletânea The anthropology of experience, organizada por Edward Bruner em 1986, resultante de um simpósio organizado por ele, Victor Turner e Barbara Myerhoff em 1980. Esse último texto de Turner é um texto difícil, algo inacabado, que elabora aspectos da leitura desses dois autores entremeando-a com uma retomada de sua noção do drama social. Há uma boa tradução para o português publicada em 2005 na Cadernos de Campo, precedida pelo artigo de John Dawsey “Victor Turner e a antropologia da experiência” (2005). Dawsey sugere que Dewey e Dilthey, tal qual os ancestrais ndembu rememorados em rituais de aflição, exercem uma função reparadora na inquieta busca de Turner pela unidade da experiência. Nas sociedades tradicionais essa unidade seria forjada na fase liminar dos rituais com a recriação coletiva de um universo social e simbólico pleno de significado (das Erlebnis). Creio que Turner buscava de fato ligar as pontas de sua vivência (Erlebnis) antropológica com a leitura desses autores e remeto o leitor interessado ao sensível texto de Dawsey.  De minha parte, apreendo essa discussão de forma mais intuitiva por meio de leituras de Dewey, Dilthey, de alguns estudos de Leopoldo Waizbort. Esse ponto tão interessante pode render futuras conversas! A noção de experiência está muito presente na tradição antropológica consagrada por Malinowski com seu Argonautas do Pacífico Ocidental (1976 [1922]) que associa a narrativa etnográfica à vivência de uma experiência de imersão no “campo”, na ênfase dada ao compartilhamento pelo pesquisador do fluxo da vida social tal como vivida cotidianamente pelos nativos. Transpira nisso a ideia de Dilthey de que a vida só pode ser apreendida de dentro da própria vida.  Na chamada antropologia social britânica, na qual Turner se formou entre os anos 1940/1950, a noção de experiência ressoava fortemente nos trabalhos de Evans-Pritchard sobre os Nuer e os Azande, nos de Meyer Fortes sobre os Tallensi, no de Godfrey Lienhardt sobre os Dinka (que se chama justamente Divinity and experience), nos de Max Gluckman, Audrey Richards, Monica Wilson, Hilda Kuper entre outros. O próprio interesse pelos rituais – que, com sua fisicalidade e materialidade simbólica, se imiscuem no contexto das relações sociais que esses autores buscavam elucidar – se impõe a partir das experiências de campo dos pesquisadores. Porém, na obra de Turner, dois elementos associados à noção de experiência tornam sua antropologia muito singular. O primeiro é a abertura para o sujeito que transforma a experiência vivida coletivamente em vivência subjetivada.  A análise e a narrativa antropológica dos dramas vividos pelos ndembus em Schism and continuity se enchem da vivacidade e densidade humana de personagens que perduram em nossa memória como se fossem nossos conhecidos. Poderosa e eficaz ilusão dramática. O segundo é o pathos do estilo narrativo compassivo e transbordante de Victor Turner. A própria leitura de seus textos parece fazer da antropologia um lugar possível de vivência de uma espécie de communitas ao iluminar o sofrimento, a finitude, as impossibilidades e tensões da vida entre diferentes culturas e sociedades humanas.

Referências

Cavalcanti, Maria Laura V. C. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Ed UFRJ, 2006 [1994]

_______. O ritual e a brincadeira. Rivalidade e afeição no Bumbá de Parintins, Amazonas. Mana. V. 24 (1), p.9-38. Março de 2018.

DaMatta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Por uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: 1979.

Dawsey, John. Victor Turner e a antropologia da experiência. Cadernos de campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 163-176, 2005.

Dewey, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Dilthey, Wilhem. Filosofia e educação. São Paulo: Edusp, 2010.

Geertz, Clifford. Blurred genres: the reconfiguration of social thought. _____. Local Knowledge. Further essays in interpretive anthropology. Basic Books. 1983.

Maggie, Yvonne. Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 [1975].

Malinowski, Bronislaw. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976 [1922].

Turner, Victor. Schism and continuity in an African society. Manchester: Manchester University Press, 1996 [1957].

_______. Floresta dos símbolos. Aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EdUFF, 2005.

_______. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes. 1974 [1969].

_______. Dewey, Dilthey e drama: um ensaio em antropologia da experiência. Cadernos de campo, São Paulo, vol. 13. N. 13, p. 177-185, 2005.

Maria Laura Cavalcanti é professora titular de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora, entre outros, de Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile Carnaval, ritual e arte. Textos e outros materiais da autora podem ser encontrados em: https://marialauracavalcanti.com.br/

Glaucia Villas Bôas é professora titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora, entre outros, de Mudança provocada e A recepção da sociologia alemã no Brasil.

Observatório antropológico: grandes e pequenas festas na pandemia Covid-19

Observatório antropológico: grandes e pequenas festas na pandemia Covid-19
Curadoria: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Comissão Organizadora: Hugo Menezes, Joana Corrêa, Maria Laura Cavalcanti,
Renata de Sá Gonçalves, Ricardo José Barbieri

Como as festas tradicionais da cultura popular contemporânea têm enfrentado ao longo da pandemia Covid-19 a suspensão da dimensão de presença física tão determinante no calendário ritual que confere graça e ritmo à vida social como um todo? Essa é a pergunta que orienta 23 pesquisas que agregam uma rede de pesquisadores das festas e rituais.

Como está sendo reinventada a vida social vista pelo ângulo das festas? Quais as formas encontradas para suprir a impossibilidade dos encontros físicos em suas diferentes escalas de amplitude?

Nas Lives e congêneres nas redes sociais, o que tem sido possível manter e o que é inevitavelmente excluído? De que modo elementos simbólicos essenciais se mantêm? Como os compromissos e as obrigações festivas e religiosas são cumpridas? Quais aspectos da memória são acionados no empenho de enfrentamento do atual contexto? Como os sujeitos nelas engajados falam de sua experiência atual, quais iniciativas solidárias e esforços de manutenção de circulação econômica e turística têm sido desenvolvidos?  Como a dor e o sofrimento trazidos pela pandemia se expressam no atual contexto festivo? Como retomarão, quando for possível fazê-lo, sua realização espacial e presencial plena?

Veja aqui o Caderno de Resumos do Primeiro Encontro do Grupo – Notícias de um ano de pandemia (fevereiro-março de 2021).

Mario de Andrade. Aspectos do folclore brasileiro.

Mário de Andrade. Aspectos do folclore brasileiro. São Paulo: Ed. Global, 2019.
Edição coordenada por Telê Ancona Lopez.

Como a COVID-19 impacta festas populares?

No décimo primeiro programa da série, Hugo Menezes, Alex Vailati e Francisco Sá Barreto, professores do PPGA-UFPE, entrevistam Maria Laura Cavalcanti (PPGAS-UFRJ) sobre as festas populares num contexto de pandemia. Qual o impacto que o adiamento de grandes festas tem sobre a população envolvida?Este programa e todos os outros estão disponíveis em todas as plataformas de suporte para podcast, bem como no perfil do projeto nas redes sociais. Museológicas Podcast é um programa fomentado pela FACEPE e desenvolvido na UFPE.

Museológicas Podcast é um programa de Extensão do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, com fomento da FACEPE.

As vozes de Campos do Jordão de Oracy Nogueira, em tempos de Covid-19, por Maria Laura Cavalcanti

Postado no Blog da Biblioteca Virtual de Pensamento Social em 6/04/2020.

As vozes de Campos do Jordão de Oracy Nogueira, em tempos de Covid-19

 Por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Sabemos pouco sobre o vírus Covid-19, causador da atual pandemia que espalha dor e tristeza no mundo. Mas entendemos claramente seu imenso escopo de contágio que indica o isolamento social como a única prevenção possível no momento, de modo a ampliar as condições de mitigação dos efeitos danosos da doença por parte da saúde pública. Sabemos também que o vírus ataca especialmente os pulmões e leio, em boletim divulgado em 24 de março pela Organização Mundial de Saúde, o quanto são particularmente vulneráveis aqueles que têm os pulmões enfraquecidos pela tuberculose.

Em nível epidêmico, a tuberculose foi controlada no Brasil, embora o número de casos tenha crescido nas últimas décadas. Na minha experiência próxima, nos últimos anos, quatro alunos e uma jovem amiga adoeceram, precisando submeter-se ao intenso tratamento de seis meses com a combinação de quatro antibióticos, descobertos entre os anos 1950 e 1960. Mais de um milhão de pessoas ainda morrem da doença no mundo, diz o mesmo boletim da OMS. Meu pai, no início dos anos 1960, contraiu tuberculose, e nos vimos, eu e minha irmã mais nova, encaminhadas para a casa de nossos tios durante as semanas iniciais de seu tratamento. Pouco se falava sobre isso, o desejo de suprimir uma doença que a todos assustava escondia o assunto nas zonas turvas do silenciamento daquilo que tanto incomodava. Mas as ciências sociais apostam no valor do conhecimento e insistem teimosamente na busca de como formular os problemas que nos inquietam em termos que nos ajudem a compreendê-los, dimensioná-los e quiçá sobre eles atuar de modo construtivo.

Em 1936, o sociólogo Oracy Nogueira (1917-1996), natural de Cunha (SP), então com 19 anos de idade, foi diagnosticado com tuberculose e afastou-se do convívio familiar para tratamento em São José dos Campos. Quando retornou, já na capital paulista, começou a formação para tornar-se professor primário seguindo a carreira de seus pais; até que, em 1939, um Anuário da Escola Livre de Sociologia e Política caiu-lhe às mãos e levou-o no ano seguinte ao bacharelado em ciências sociais naquela instituição; e logo ao mestrado, para o qual elegeu como tema de pesquisa a tuberculose como experiência social, nesse caso em Campos do Jordão. Em 1945, ele concluía, sob orientação de Donald Pierson, o precursor trabalho Vozes de Campos do Jordão: experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar no Estado de São Paulo (Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2009).

O contágio fácil do Covid-19, o perigo do contato físico, a ameaça que o convívio com as crianças pequenas, por sorte assintomáticas ou imunes, passaram a  significar para os mais velhos (avó de 5 netos, e um por chegar em breve, sinto diariamente a estranheza do afastamento), o isolamento social em suma, são elementos que ressoam na experiência social da tuberculose pulmonar, sobre a qual Oracy Nogueira lançou nos anos 1940 o olhar inovador das ciências sociais que também aqui se iniciavam.

Nosso autor buscou compreender como os indivíduos se tornavam socialmente “doentes” e examinou todo o processo do “tornar-se doente”, do diagnóstico à almejada cura, passando pelo internamento com a separação do doente de seu círculo próximo, ou seja, pela segregação que, nos anos 1940, acompanhava o tratamento geralmente prolongado da tuberculose.  O livro transpira o conceito de estigma com que mais tarde Erving Goffman batizaria a forma de demarcar a distância social, também expressa no comportamento social relativo aos tuberculosos.

Para além da causa orgânica responsável pelo desenvolvimento da doença e das práticas terapêuticas adotadas para combatê-la, interessavam a Nogueira as representações, os significados e estereótipos atribuídos à doença que informavam as condutas sociais. Atitudes e ideias integravam, na visão do autor, um complexo cultural que se impunha tanto aos sãos quanto aos doentes. O ponto de vista dos doentes, no entanto, foi seu principal foco por meio do convívio com um grupo de 104 pessoas “portadores de tuberculose pulmonar”, isolados para tratamento em uma estação de cura em Campos do Jordão, a sua Montanha Mágica.

Oracy Nogueira (no centro) em Itapetininga. 1948

Na estação de cura, os doentes tornavam-se um grupo social característico cuja interação regulava a conduta de seus membros com verdadeiros ritos de passagem e gíria característicos, por meio dos quais os novos integrantes socializavam-se naquele novo ambiente, feito de ideias, atitudes e valores muito próprios. Esses doentes, por sua vez, encontravam-se imersos em um complexo processo de negociação da realidade por meio da interação cotidiana com enfermeiros, médicos, internos e sãos, e com a própria população local que se afastava dos circuitos urbanos por onde a circulação dos internos era permitida. A pesquisa associou aos métodos quantitativos – quadros estatísticos e preocupação com a objetividade do conhecimento produzido – a métodos qualitativos –observação participante, entrevistas de histórias de vida, questionários e exame de documentos íntimos, como os diários e correspondências de alguns doentes cedidos ao autor. O livro teve expressiva recepção quando de sua edição em 1950 e parte das análises recebidas, encontradas no Fundo Oracy Nogueira (*), foram incorporadas à edição de 2009 do livro que organizei para Ed. Fiocruz. Luiz de Castro Faria, que foi meu professor em cursos de pós-graduação no PPGAS do Museu Nacional/UFRJ, referia-se ao livro como “um clássico esquecido”. Não mais.

Nogueira inovou ao propor ao olhar sociológico perguntas até então inusitadas: como os indivíduos recebem o diagnóstico da doença? Como seus familiares o fazem? Como a passagem da condição de são à de doente afeta a subjetividade da pessoa envolvida? Como a discriminação e os estereótipos relacionados à doença são introjetados pelos próprios doentes? Como um recém-chegado se socializa na estação de cura? Como médicos, enfermeiros, doentes e sãos se confrontam na experiência do dia a dia? O “ambiente tuberculoso” revelou-se então com seus grupos, suas regras, seus valores e representações próprios, com seus conflitos e suas formas de controle social, e com seu repertório próprio de modos de pensar, sentir e agir. O livro nos aproxima dessa experiência, desfaz preconceitos, redimensiona a doença como experiência vivida, qualificando como também decisivas para sua compreensão as dimensões socioculturais.

A tuberculose ainda preocupa embora a conduta terapêutica da segregação e sua dimensão epidêmica tenham sido superadas. Campos do Jordão é hoje uma cidade de turismo ecológico. Mas a criatividade, acuidade e empatia com que Nogueira registrou suas vozes permanecem convidando novas gerações de leitores a ouvi-las. E elas parecem soar mais alto em nossos tempos de Covid-19.

 

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[i] Professora Titular de Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, docente e pesquisadora no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ).

(*) Oracy Nogueira nos legou seus arquivos, hoje reunidos no Fundo Oracy Nogueira, sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, onde se encontra aberto à consulta (www.arch.coc.fiocruz.br).  O inventário do Fundo e diversos trabalhos do autor podem também ser encontrados no site: https://marialauracavalcanti.com.br/

 

As imagens que ilustram este post pertencem ao Fundo Oracy Nogueira.

A primeira é um recorte da divulgação de Vozes de Campos do Jordão, que pode ser vista inteira aqui. A segunda é uma foto de Oracy Nogueira (no centro) em Itapetininga, 1948.